A novela da reconstrução da rodovia BR-319, que se arrasta há pelo menos 27 anos nos planos de diferentes presidentes da República, não consumiu apenas tempo e a esperança dos amazonenses, mas sobretudo dinheiro público gasto inutilmente – até o momento -, uma vez que a rodovia está longe de voltar a ser trafegável, como foi até 1988.
Um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), de março de 2020, mostra que o Departamento Nacional de Infraestrutura em Transportes (Dnit) pagou, entre 2010 e 2019, mais de R$ 113 milhões em convênios, com instituições públicas e empresas privadas, para conseguir licenciar a obra de reconstrução e pavimentação do Trecho do Meio da rodovia BR-319.
Foram 12 convênios que visavam atender pré-requisitos elaborados pelo pimeiro Grupo de Trabalho da BR-319, criado em outubro de 2008 pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA). Esse GT elaborou diretrizes para acompanhar o processo de licenciamento ambiental e apresentou as medidas preventivas que deveriam ser adotadas pelo Ministério dos Transportes (MT) e Dnit para evitar o desmatamento e a descaracterização do bioma amazônico ao longo da estrada.
Desse grupo saíram 10 recomendações. São elas:
- Disponibilização prévia de recursos, conforme apresentado no Plano de Proteção e Implementação das Unidades de Conservação da BR-319 (até a Licença Prévia – LP) ;
- Implantação imediata de ações interinstitucionais de proteção e vigilância para a área de influência da BR-319, visando impedir o desmatamento e a descaracterização da área (até a LP) ;
- Execução imediata de ações para demarcar e sinalizar as unidades de conservação e projetos de assentamentos rurais (até a Licença de Instalação – LI) ;
- Elaboração e execução de um plano de desenvolvimento e regularização fundiária pelo Incra para as áreas ao longo da BR-319 (até a LP) ;
- Elaboração e execução, pelos órgãos ambientais estaduais, de um plano de regularização ambiental das propriedades particulares identificadas, assim como dos projetos de assentamento rurais (até a LP);
- Levantamento, organização e disponibilização de informações geográficas relacionadas aos órgãos públicos com ações de desenvolvimento previstas ao longo do eixo da BR-319, visando a compatibilização de atividades (elaboração até a LP; implementação até Licença de Operação – LO);
- Garantia, no processo de licenciamento ambiental, da manutenção de conectividade das áreas naturais relevantes com as UCs e áreas de preservação permanentes definidas no Código Florestal, além de outras áreas definidas em estudos específicos, através do estabelecimento de modelos de engenharia apropriados (até a LP);
- Criação de vagas, autorização de concursos e alocação de recursos nas instituições responsáveis pela gestão das áreas sob influência da BR-319, tais como Ibama, ICMBio, Incra, Funai, órgãos de meio ambiente estaduais, institutos de terras estaduais e Serviço Florestal (até a LI) ;
- Formulação e implementação de programas estratégicos com vistas ao desenvolvimento social e econômico da região, tais como ecoturismo e agroextrativismo (até a LI);
- Formação de um comitê gestor para planejar, acompanhar e monitorar a implementação dessa e outras ações previstas para a região (até a LP).
Cumprir recomendações do GT é ‘missão impossível’
Uma olhada rápida nessas recomendações mostra que seria necessário um alinhamento planetário perfeito entre órgãos dos Governo federal, estadual e até de prefeituras municipais, além de condicionar a emissão das respectivas licenças (LP, LI e LO) ao cumprimento das recomendações.
Dentre as recomendações difíceis de cumprir estão as que exigem a realização (prévia) de concursos públicos em diversos órgãos (União e Estados) e a disponibilização prévia de recursos públicos para a realização dos programas recomendados.
Para cumprir essas exigências, o Dnit elaborou, ao longo de dez anos, 12 convênios/parcerias para tentar atender a todas as recomendações e construir o Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental (Eia-Rima) necessário para conseguir obter as diferentes licenças.
“Nesse contexto, o DNIT celebrou doze contratos, convênios e termos de cooperação com entes públicos e privados, com objetos diversos, tais como: demarcação de UCs; implementação e proteção de UCs federais e estaduais; execução de programas ambientais; elaboração de projeto de engenharia para os portais de fiscalização; e elaboração e complementação de estudos de impacto ambiental. Até 25/9/2019, o DNIT já desembolsou R$ 113.885.742,18 com esses instrumentos”, revela o relatório do TCU encaminhado ao Senado Federal e assinado pelo ministro-relator Walton Alencar Rodrigues.
O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) foi o primeiro a assinar um convênio com o Dnit e recebeu o maior montante de recursos. Pelo Termo de Coooperação 915/2010, o instituto receberia R$ 33.488.161,00 milhões, dos quais recebeu R$ 31.195.670 – R$11 mi foram repassados. A missão era a implementação e proteção das Unidades de Conservação Federais ao longo das BR-319.
O Exército Brasileiro (EB) firmou três Termos de Cooperação e dois Planos de Trabalho com o Dnit, que juntos somaram R$ 52.094.144,02 milhões
O primeiro Termo de Cooperação é de 2010 e tinha como objetivo a “Demarcação de UC´S Federais e Estaduais na faixa de influência da rodovia BR-319“. Por esse serviço, o Dnit repassaria R$ 29.1 milhões, dos quais foram pagos R$ 29.083.655,44 à Diretoria de Ciência e Tecnologia do Exército (DCT/EB).
O segundo Termo de Cooperação é o de número 339/2010, pelo qual o Exército ficou responsável pelo Programa de Monitoramento e Controle de Faixa de Domínio da BR-319, nos seguimentos A, B e C . Para este trabalho, o Dnit pagou R$ 15.993.708,92 a Diretoria de Engenharia e Construção (DEC/EB).
O terceiro Termo de Cooperação é o de 453/2010, cujo objetivo era “Elaboração de projeto de engenharia para os portais de fiscalização“. Pelo serviço, o Dnit pagou R$ 1.497.379,66 ao Departamento de Engenharia e Construção do Exército (DEC/EB).
Os dois Planos de Trabalho também foram firmados com a Diretoria de Engenharia e Construção (DEC/EB). O primeiro, de número 30.001.07.01.77.01, previa a execução de Programas Ambientais dos Segmentos A, B e C da BR-319. O valor pago foi de R$ 2.759.700,00 milhões
O segundo Plano de Trabalho, de número 30.001.07.01.97.01, previa a “Elaboração de estudos para subsidiar a autorização para supressão da vegetação e obtenção das licenças de instalação para implantação e substituição de pontes“. Pelo trabalho, a Diretoria de Engenharia e Construção recebeu os mesmos R$ 2.759.700,00 do primeiro plano.
A Fundação Coordenação de Projetos, Pesquisas e Estudos Tecnológicos (Coppetec), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), firmou com o Dnit, em 2009, o contrato 1329/2009 para “Execução de Programas Ambientais e gerenciamento técnico de processo de licenciamento ambiental”. O valor do contrato era de R$ 12.657.337,57 milhões, que foram pagos integralmente segundo relatório do TCU.
O Governo do Amazonas também recebeu recursos do Dnit neste esforço de conseguir as licenças para as obras da BR-319. O Centro Estadual de Unidades de Conservação (CEUC), da Secretária Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SDS), recebeu R$ 9,9 milhões para “Implementação de nove UCs estaduais do Amazonas localizadas na área de influência da BR-319”.
Ufam contratada para fazer o Eia-Rima em dois convênios
A Fundação Universidade do Amazonas (FUA), que posteriormente foi renomeada par Universidade Federal do Amazonas (Ufam), assinou dois contratos com o Dnit nesse esforço do órgão para conseguir avançar no licenciamento das obras da rodovia BR-319.
O primeiro foi oficializado pela portaria 683/Dnit e previa a Elaboração do EIA/RIMA e PBA. Pelo trabalho, executado pelo Centro de Ciências do Ambiente da Ufam (CCA-Ufam), o Dnit pagou R$ 2.023.306,00 milhões.
Este Eia/Rima foi submetido ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), mas foi recusado e devolvido, pelo não atendimento do Termo de Referência e da Metodologia de Levantamento de Fauna.
Um novo contrato com a FUA foi oficializado pela portaria 1922, que previa a “Adequações do EIA/RIMA” que foi recusado. O trabalho voltou a ser feito pela CCA/Ufam e custou ao Dnit R$ 1.081.646,55 milhão. Assim como o primeiro, este novo Eia-Rima foi recusado pelo Ibama.
A Ufam recebeu pelo trabalho de elaboração e posteriormente adequação do Eia-Rima para a obra da rodovia BR-319 um total de R$ 3.104,952,55 milhões. O valor, contudo, não passa nem perto do que a próxima empresa encarregada de elaborar o documento receberia em 2013.
Já no primeiro governo da presidente Dilma Rousseff (PT), o Dnit contratou a Engespro Engenharia para fazer a “Complementação do Eia-Rima). O contrato SR 213/2013 previa um valor de R$ 10.001.001,03 milhões, mas foi suspenso por uma liminar da Justiça Federal no Amazonas.
Até essa decisão, diz o relatório do TCU de março de 2020, o Dnit já havia repassado a Engespro um total de R$ 4.875.087,93. Em 2021, a liminar que suspendeu o contrato com a empresa de engenharia foi derrubada e o contrato retomado.
O último convênio listado pelo TCU como parte da estratégia do Dnit de atender às recomendações do GT da BR-319 do Ministério do Meio Ambiente foi firmado em 2013 com o “Consórcio Etnias”. Pelo contrato SR 213/2013, o consórcio ficaria responsável pelos “Estudos do Componente Indígena” e previa o pagamento de R$ 2.117.293,74 milhões. Deste total, até março de 2020, o Dnit só havia repassado ao consórcio R$ 112.460,03.
Para o ministro-relator Walton Alencar Rodrigues, as recomendações do GT não eram impeditivas do licenciamento, mas decorreram de um acordo entre os diferentes órgãos envolvidos no licenciamento e execução da obra da BR-319.
Walton destaca ainda que para o acompanhamento e fiscalização da evolução das ações de atendimento as recomendações foi criado um Comitê Gestor Interministerial da BR319/AM/RO, isso em 2009. Esse comitê, segundo apuração do ministro, se reuniu 14 vezes, sendo que a última foi em 2011, oito anos antes da elaboração do relatório feito por ele, a pedido do Senado Federal.
“Ocorre que o Comitê” – que era composto pelos Ministérios dos Transportes (MT) , do Meio Ambiente (MMA) , da Justiça (MJ) e do Desenvolvimento Agrário (MDA) , além do DNIT, Ibama, ICMBio, INCRA, Departamento de Polícia Federal, Departamento de Polícia Rodoviária Federal e secretarias do então Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão – “teve sua última reunião em 25/2/2011 e foi extinto em atendimento ao Decreto 9759/2019, que estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal”, escreve Walton.
Mas como veremos na terceira parte desta série de reportagens do RealTime1 sobre a rodovia BR-319, não foi só este comitê gestor que deixou de fazer sua parte na hora de cumprir compromissos que a área ambiental do Governo Federal considerava fundamental para conceder o licenciamento da obra de reconstrução do trecho do meio.
Por: Gerson Severo Dantas/RealTime1
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